25 April 2012

Uma Vela no Mundo Mágico em que Vivemos

Quando usamos um celular para conversar com alguém distante, ou quando compramos um medicamento para tratar uma doença e/ou procuramos uma benzedeira para curar o mal, ou quando usamos a internet para procurar um emprego e/ou  rezamos para um santo poderoso a fim de encontrar trabalho, o importante é atingir o objetivo, não importa de que maneira. Vivemos num mundo mágico em que o funcionamento de um celular é tão misterioso quanto as rezas de uma benzedeira. Afinal, se é possível falar com uma pessoa noutra cidade, porque não é possível curar doenças através de preces ou de pensamentos positivos? É claro que o celular nem sempre conecta na primeira tentativa, e atribuímos isso à baixa qualidade dos serviços da operadora, ou a uma tempestade recente. Nem sempre o remédio ou a benzedeira surtem efeito, e culpamos o médico por ter prescrito um medicamento inapropriado e por ter levado o doente poucas vezes à benzedeira. Se não conseguimos o emprego sonhado, é culpa da economia, e da falta de fé
no santo milagroso. Há sempre uma explicação aparentemente lógica, porém, quase sempre irracional. Para a grande maioria da população, inclusive aquela parcela que foi educada em boas escolas, não há distinção entre usar meios científicos ou usar meios místicos para compreender o que acontece a nós. Isto tudo reflete uma falha gravíssima do sistema educacional, a sua incapacidade de ministrar uma educação científica de qualidade, que mostre a distinção entre fatos naturais, que são estudados e compreendidos pela ciência, e crendices populares baseadas na superstição e na religião. E não apenas no Brasil, mas no mundo afora, primeiro mundo incluído.


Uma das causas dessa ausência de cultura científica é o fato de que a grande maioria dos professores de ciências (física, química, matemática e biologia aí incluídos), não aprenderem o método científico no curso de licenciatura. O método científico é um conjunto de regras que deve ser utilizado a fim de se ganhar conhecimento sobre os fenômenos que temos interesse de compreender. Ele impede que nossas convicções pessoais interfiram com o processo de aquisição de conhecimento. O método científico começou a ser aplicado metodicamente à partir do século  XVII, inicialmente na física e depois nas outras ciências, e gerou os grandes avanços na compreensão da natureza que produziram, e produzem, os avanços tecnológicos que fazem parte do nosso cotidiano. Ele funciona da seguinte maneira:


  1. Devemos delimitar o conjunto de fenômenos que desejamos compreender. [Por exemplo, ao ligarmos o carro, o motor de arranque não funciona.] 
  2. Propomos hipóteses que expliquem o conjunto de fenômenos observados. [Podemos inicialmente supor que a bateria está descarregada.]
  3. Com base nas hipóteses fazemos a previsão de novos fenômenos. [Se a bateria está descarregada então os faróis não devem acender.]
  4. Realizam-se experimentos para verificar a validade das previsões. [Ligamos os faróis.] 
  5. Se os experimentos confirmam as previsões isso valida as hipóteses do passo 2. Retornamos ao passo 3 e fazemos novas previsões. [Se os faróis não acendem, isso reforça nossa hipótese. Podemos confirma-la produzindo um curto-circuito conectando os dois polos da bateria.] 
  6. Se os experimentos não confirmam as previsões deve-se voltar ao passo 2 e modificar as hipóteses de forma que também expliquem os resultados do experimento que acabou de ser realizado. Com esse conjunto novo de hipóteses retorna-se ao passo 3. [Se os faróis acendem, descartamos a hipótese inicial e retornamos ao passo 2. Podemos agora supor que não há gasolina e ir ao passo 3 para testar essa hipótese.]

Embora pareçam simples, essas regras devem ser aplicadas cuidadosamente e requerem inteligência, imaginação e criatividade em cada passo. Foram elas que permitiram a ciência alcançar o patamar em que ela se encontra hoje. Possuem a virtude de estar sempre ampliando nosso corpo de conhecimento. Sempre que novos fenômenos são descobertos, a necessidade de novas hipóteses leva ao crescimento do corpo de conhecimento que existia anteriormente. O método científico não se aplica à religião já que os dogmas religiosos (que estamos chamando de hipóteses) são imutáveis. O questionamento dos dogmas é uma heresia e, portanto, não é permitida. Por isso a ciência cresce mas a religião permanece sempre estagnada. Mais detalhes do método científico podem ser encontrados nesta aula.

O método científico deve ser aplicado preferencialmente em situações onde métodos quantitativos podem ser utilizados. Isso requer a aplicação de técnicas matemáticas, as vezes simples, as vezes sofisticadas. Muitas vezes é possível aplica-lo de forma qualitativa para ganhar algum conhecimento concreto. Um texto de Carl Sagan, no livro O Mundo Assombrado pelos Demônios, ilustra muito bem a aplicação do método científico nessa situação. O título do texto é: O Dragão em Minha Garagem. O texto encontra-se disponível em áudio:

                                                           O Dragão em Minha Garagem

Ele descreve a situação em que tenho um amigo que afirma ter um dragão na garagem de sua casa. Vamos até lá e não vejo nenhum dragão. Meu amigo diz que se trata de um dragão invisível. Proponho derramar farinha no chão da garagem para ver suas pegadas. Meu amigo diz que o dragão flutua no ar. Proponho usar um sensor infravermelho para detectar o fogo produzido pelo dragão. Meu amigo diz que o fogo produzido pelo dragão é desprovido de calor. A cada teste que proponho meu amigo encontra uma maneira de invalida-lo. Aplicando o método científico temos no passo 1:  um dragão numa garagem que é invisível, flutua no ar, produz fogo sem calor, etc. No passo 2 a hipótese mais simples é a de que o dragão não existe. Afinal, qual a diferença entre um dragão que não pode ser detectado de nenhuma forma e um dragão inexistente? Essa hipótese deve então ser acompanhada da hipótese de que meu amigo está sofrendo ilusões para explicar as observações do passo 1. Uma previsão possível no passo 3 é que meu amigo seja esquizofrênico e esteja tendo alucinações. O passo 4 requer que ele seja examinado por um médico ou psiquiatra para verificar a causa das ilusões. Se for confirmado alguma doença que gere alucinações a hipótese inicial estará confirmada. Caso contrário será necessário modifica-la. Veja que a validade da hipótese não depende de nossas idéias preconcebidas. Vai depender do laudo médico!

Outra situação em que é possível aplicar o método científico é na questão do poder da oração. Esse assunto já foi abordado num post anterior. Foi feito um estudo sobre o efeito das preces na recuperação de pacientes que sofreram cirurgia cardíaca. Não foi detectado nenhum efeito significativo. O trabalho foi publicado numa revista médica americana (acesso apenas através de universidades) em 2006. Novamente, o método científico foi fundamental. Há uma crença generalizada de que pedidos são atendidos mediante orações. Esse é o passo 1, o que se deseja verificar. Passo 2: assumimos como hipótese que as orações surtem efeito. Passo 3 faz-se um experimento para verificar diretamente a veracidade da hipótese. O resultado do experimento mostra que a hipótese é falsa e deve ser descartada. Independente da crença pessoal dos envolvidos!

As orações não ajudam na recuperação de doentes mas também não causam mal algum. Porém, em outros situações, pode haver prejuízos sérios. Esse é o caso da homeopatia. Remédios homeopáticos não curam e a ausência de um tratamento adequado prejudica em muito o paciente.  Para compreender porque a homeopatia não funciona vou descrever como o remédio homeopático é preparado. Uma substância tóxica ou venenosa que causa insuficiência respiratória, por exemplo, é usada para combater doenças cujo sintoma é insuficiência respiratória. Como a substância é tóxica, ela deve ser diluída antes de ser administrada ao paciente. O processo de diluição é o seguinte. Toma-se uma gota da substância tóxica e dilui-se em 99 gotas de água destilada (ou água misturada com um pequena quantidade de álcool). Essa é uma diluição de 1C, ou de uma parte em cem. Toma-se agora uma gota dessa solução diluída e mistura-se com 99 gotas de água destilada (ou com álcool) e obtém-se um diluição de 2C, ou seja de uma parte em dez mil. E o processo continua sendo repetido da mesma maneira. Após uma diluição de 12C (no qual o processo acima foi repetido 12 vezes) existe menos do que uma molécula da substância tóxica original na solução diluída. Porém, o processo de diluição não pára em 12C. Continua até 30C, que é a diluição da maioria dos remédios homeopáticos. Com tal diluição não existe sequer uma única molécula da substância tóxica no remédio homeopático. A solução homeopática é água pura (ou água misturada com um pouco de álcool). Essa solução é então jogada em bolinhas brancas de açúcar e entregue aos pacientes. Não há nada nas bolinhas a não ser açúcar! O remédio homeopático não contém absolutamente nada e por isso não produz efeito algum.

Em 1997 foi efetuado um experimento publicado numa revista especializada em enxaqueca (acesso apenas através de universidades), num hospital homeopático na Inglaterra, para testar a eficácia  do remédio homeopático para enxaqueca. O experimento foi duplo cego, isto é, metade dos pacientes recebeu o remédio homeopático e a outra metade recebeu placebo (as mesmas bolinhas brancas de açúcar mas sem o remédio homeopático). Nem os pacientes, nem  os médicos sabiam se o paciente estava ingerindo o medicamento ou o placebo. Foram escolhidos 63 pacientes que sofriam de enxaqueca.  Ao final do tratamento, 19% dos que tomaram o remédio homeopático e 16% dos que tomaram o placebo afirmaram que melhoraram. Não há diferença significativa entre o efeito placebo e a homeopatia, como era de se esperar. Após esse resultado, todos os hospitais homeopáticos tem-se recusado a participar de experimentos desse tipo. De fato, a situação para a homeopatia está feia na Inglaterra. Todos os hospitais e médicos, inclusive os adeptos da homeopatia, são subvencionados pelo sistema de saúde inglês. Há uma discussão no parlamento se tratamentos homeopáticos devem ser subvencionados uma vez que não há evidência científica em seu favor. Além disso, as universidades inglesas fecharam os cursos de medicina alternativa, incluindo as de homeopatia, em 2012. Há um vídeo interessante da BBC que trata da homeopatia e de outros aspectos não discutidos aqui. A primeira parte é esta:

                                                              Homeopathy - The Test

Não é necessário ser um cientista para usar o método científico. Qualquer um pode faze-lo, até mesmo uma criança, desde que seja cuidadosa. Uma menina americana, Emily Rosa, com 9 anos, assistiu um programa na televisão que a deixou muito impressionada. Enfermeiras sensitivas, trabalhando num hospital, podiam detectar com a mão, sem tocar no paciente, quais partes do corpo do paciente estavam doentes e quais estavam sadias. Elas diziam que sentiam uma "energia" diferente nas partes doentes. Então colocavam a mão  na região doente para transmitir "energia positiva" e, dessa forma, acreditavam melhorar a recuperação do paciente. Nos EUA isto é conhecido como toque terapêutico. Emily, então no quarto ano, resolveu fazer um trabalho escolar sobre esse tema para apresentar na feira de ciências de sua escola, obviamente com a ajuda de seus professores.
Como tratava-se de uma situação extremamente complexa decidiram aplicar o método científico numa situação mais simples, mas que captura a essência do fenômeno a ser estudado. Colocaram uma divisória alta com dois buracos sobre uma mesa, conforme a foto de Emily e do experimento ao lado. Num lado da mesa estava uma enfermeira sensitiva que colocava suas mãos pelo buraco. No outro lado da mesa Emily colocava a sua mão cerca de 10 centímetros acima de uma das mãos da enfermeira. Esta, através de sua sensitividade, deveria dizer onde estava a mão de Emily. É claro que na ausência de qualquer informação, a probabilidade de acertar a mão que Emily escolhera ao acaso é de 50%. Cada enfermeira fez 10 tentativas. Ao final, a média de acerto foi de 44%, bem próxima do acaso: as enfermeiras não possem qualquer poder sobrenatural. Os médicos do hospital ficaram tão impressionados com o experimento que recomendaram que o mesmo fosse publicado na revista médica americana mais famosa, o JAMA. O artigo foi publicado em 1998 e Emily é a pessoa mais jovem a ter um artigo publicado numa revista de medicina. Hoje ela é uma psicologa.

Dessa forma, efeitos ditos paranormais ou extra-sensoriais podem ser investigados e sua realidade constatada, caso sejam reais. O mágico James Randi oferece um premio de um milhão de dólares a quem demonstrar a existência de qualquer efeito paranormal. O premio está disponível desde 1996 e ninguém o levou. Um claro sinal de que tais efeitos não existem. Mesmo assim, você pode ainda optar por falar com uma pessoa distante usando um celular ou usando a telepatia. Afinal, a crença comum é de que todos nós temos poderes telepáticos. Apesar da péssima qualidade das operadoras de telefonia ainda não vi ninguém usar a telepatia.

Para a maior parte dos habitantes deste planeta vivemos num mundo mágico. Desconhecem a única vela que pode iluminar a sua existência e afastar as sombras da superstição, a ciência. A criatividade humana é imprescindível para nossa existência e para o progresso da ciência. Harry Potters, Frodos e Yodas são importantes para exercitar nossa imaginação. Criações de nossa mente não devem, entretanto, ser usadas como armas para subjugar o próximo. Todos devem ter acesso à educação de qualidade, que lhes permita separar o que é real daquilo que foi criado para escravizar outras pessoas através da ignorância. Disseminar a ciência e o método científico é o primeiro passo. E o livro do Sagan é uma mão na roda.

UPDATE: O Jornal da Ciência acaba de publicar uma matéria muito boa sobre o assunto: O que há de verdade em alguns produtos e terapias alternativos.

3 comments:

Felipe Kiipper said...

Acredito que seja interessante considerar a importância do método científico para trazer explicações, mas não devemos ignorar a eficiência do homem em atribuir explicações, que mesmo que não tenham lógica aparente, pois estas são, sim, bastante úteis. Eventos quando justificados em métodos como a astrologia, têm muitas vezes como fundamento o chamado "marcador somático". O marcador somático é uma tática do cérebro, que utiliza experiências passadas para justificar e construir pressentimentos. Assim, se olhamos uma pessoa e a julgamos inconfiável, podemos atribuir isso a seu signo astrológico, mas na verdade, o cérebro está processando imagens e detalhes, como a expressão e fisionomia da pessoa, e emergendo essa conclusão num sentimento ou "affect", que interpretamos nas mais diversas e absurdas maneiras! Note que não se trata de compreender a realidade através da astrologia, mas sim utilizá-la como um método válido para tomarmos a melhor decisão!

Victor Rivelles said...

"Acredito que seja interessante considerar a importância do método científico para trazer explicações, mas não devemos ignorar a eficiência do homem em atribuir explicações..."

Caro Felipe,

O ponto mais importante do método científico é o de ser impessoal! A história tem demonstrado como somos extremamente ineficientes em atribuir explicações aos fenômenos que nos cercam.

A proposito, o método científico também mostra que a astrologia não funciona.

Anonymous said...

Que bom que esse blogger voltou a ativa, professor Rivelles é sempre muito sério quando o assunto é ciência, física em particular. Sobre esse tópico em questão aproveito para indicar o livro: O mundo assombrado pelos demônios de Call Sagan. Que vai na mesma linha do poster em questão.