28 February 2006

O mundo quântico é um barato

O Cosmic Variance traz uma descrição muito boa de um efeito quântico bastante interessante em Quantum interrogation. Trata-se de uma ilustração de como voce pode detectar alguma coisa sem ter que olhar diretamente para o objeto! O texto está em inglês mas acho que vale a pena fazer uma versão para que as dificuldades da língua não se misturem com a compreensão do texto. Aí vai o texto que o Sean Carroll escreveu.

O problema é o seguinte: temos uma caixa grande na nossa frente e queremos saber se existe um cachorrinho dormindo dentro da caixa. Como somos bastante caridosos com os animais, é extremamente importante que o cachorrinho não acorde. Além disso, devido à circunstâncias complicadas demais para serem explicadas aqui, temos apenas uma opção ao nosso dispor: a capacidade de passar por um pequeno buraco na caixa um tipo de comida. Se a comida é feita de algo que não interessa ao cachorrinho, como uma salada, não notaremos nenhuma reação. Ele continuará dormindo solenemente, ignorando a comida. Mas se for algo delicioso, como um bife suculento, o cheiro da carne chegará ao cachorrinho que irá acordar e latir frenéticamente.




Parece um beco sem saída. Se colocarmos uma salada não concluíremos nada, pois não temos como distinguir entre um cachorro dormindo e nenhum cachorro dentro da caixa. Se colocarmos o bife saberemos sem dúvida se existe, ou não, um cachorrinho dentro da caixa, pois se ele estiver lá, vai acordar e latir, mas não queremos que isso aconteça.

Felizmente, temos não só muita consideração pelo cachorrinho, mas somos também excelentes físicos experimentais com um domínio muito grande da mecânica quântica. De acordo com a interpretação convencional da mecânica quântica, temos que considerar apenas três pontos cruciais e surpreendentes.

  • Primeiro, objetos podem existir numa superposição das características desse objeto, características estas que podem ser medidas. Por exemplo, se temos um tipo de comida, de acôrdo com a mecânica clássica, ele só pode ser ou uma "salada" ou um "bife". Mas de acôrdo com a mecânica quântica, o estado verdadeiro do tipo de comida pode ser uma combinação, conhecido como a "função de onda". Ela tem a forma (comida) = A (salada) + B (bife), onde A e B são coeficientes numéricos. Isso não significa (como voce pode ter a impressão) de que não estamos seguros de qual tipo de comida existe; na verdade estamos descrevendo uma superposição simultânea das duas possibilidades, salada e bife.


  • A segunda coisa surpreendente é que nunca conseguimos observar a comida em tal superposição; sempre que nós (ou o cachorrinho) observa a comida, encontraremos sempre ou uma salada ou um bife (os autoestados do operador comida, para os entendidos). Os coeficientes numéricos A e B nos dizem qual é a probabilidade de medir uma das alternativas; a chance que temos de observar uma salada é A2, enquanto a chance de observarmos um bife é B2. Óbviamente, devemos ter A2 + B2 = 1, uma vez que a probabilidade total deve ser 1 (pelo menos num mundo em que existe apenas dois tipos de comida, salada e bife, que é o que estamos assumindo por simplicidade).


  • Terceiro, o ato observar a comida muda seu estado de uma vez e para sempre, e passa a ser aquele que é de fato observado. Se olhamos a comida e é uma salada, o estado do tipo de comida é, daí para frente, (comida) = (salada), enquanto que se virmos um bife teremos então (comida) = (bife). Isto é o "colapso da função de onda".


Voce pode parar agora e ler tudo isso novamente. É normal não assimilar tudo de primeira. Porém, isto é tudo o que voce precisa saber sobre mecânica quântica; o resto são equações para dar uma descrição mais precisa.

Vamos agora aplicar tudo isso para descobrir se existe algum cachorrinho na caixa, sem acorda-lo. Suponha que pegamos o prato de comida e que somos capazes de manipular sua função de onda, isto é, somos capazes da efetuar várias operações sobre o estado descrito por (comida) = A (salada) + B (bife). Em particular, imagine que podemos girar a função de onda, sem realmente observa-la. Ao usar esta linguagem, estamos pensando acerca do estado da comida como um vetor num espaço bidimensional cujos eixos são chamados (salada) e (bife) (se esse espaço fosse um plano, os eixos seriam chamados de x e y). As componentes do vetor são simplesmente (A,B). E "girar" tem o significado usual de efetuar uma rotação no vetor no seu espaço bidimensional. Uma rotação de noventa graus, por exemplo, gira (salada) em (bife), e (bife) em -(salada); este sinal de menos está realmente aí, mas não afeta as probabilidades uma vez que elas são dadas pelo quadrado dos coeficientes. Esta operação de rotação do vetor comida, sem observa-lo, é perfeitamente legítima, já que se não sabemos o estado antes da rotação, ainda não sabemos o estado depois da rotação.

O que acontece então? Comece com alguma comida no estado (salada) e o coloque na caixa. Quer exista um cachorrinho ou não dentro da caixa nenhum latido será ouvido pois cachorros não se interessam por saladas. Agora gire o estado de 90 graus, convertendo o estado (salada) no estado (bife). Colocamos na caixa novamente; infelizmente o cachorrinho sente o bife (provavelmente pelo cheiro) e começa a latir. Isso não ajudou muito, pois o cachorrinho acabou acordando.

Imagine agora que começamos com a comida no estado (salada), e giramos de 45 graus ao invés de 90. Temos, então, uma superposição (comida) = A (salada) + A (bife), com os dois coeficiente iguais a um dividido pela raiz de dois (que vale cerca de 0.71; dessa forma, a soma do quadrado dos coeficientes 0.712 + 0.712 = 1, como deve ser). Se fossemos observa-lo (o que não faremos), existiria uma chance de 50% (isto é, 0.712) que seria salada, e uma chance de 50% de que seria bife. Coloque-o agora na caixa. O que acontece? Se não existe nenhum cachorrinho dentro da caixa, nada acontece. Se há um cachorrinho, temos uma chance de 50% de que o cachorrinho encontre uma salada e permaneça dormindo e 50% de chance de que ele encontre um bife e comece a latir. Neste caso, o cachorrinho sentiu a comida (quer seja salada ou bife) e colapsou a função de onda ou no estado puro (salada) ou no estado puro (bife). Logo, se não ouvirmos qualquer latido, ou não existe cachorrinho e o estado está ainda no estado que tem uma superposição de 45 graus, ou existe um cachorrinho na caixa e a comida está no estado puro (salada).

Vamos assumir que não ouvimos nenhum latido. Cuidadosamente, retiramos a comida da caixa, sem observa-la, e giramos o estado de outros 45 graus. Se não há nenhum cachorrinho na caixa, tudo o que fizemos foram duas rotações consecutivas de 45 graus, que é simplesmente uma rotação de 90 graus; pegamos um estado que era puramente (salada) e o giramos num estado que é puramente (bife). Mas se há um cachorrinho, e não escutamos nenhum latido, o estado que sairá da caixa não é mais uma superposição, mas um estado puro (salada). Nossa rotação, portanto, gira esse estado no estado (comida) = 0.71 (salada) + 0.71 (bife). E agora, nós próprios observamos o estado. Se não existe nenhum cachorrinho na caixa, após toda essa manipulação, encontramos um estado puro (bife), e observamos a comida como sendo um bife com probabilidade um. Mas se existe um cachorrinho, mesmo que não escutemos nenhum latido, nossa observação final será de uma chance de (0.71)2 = 0.5 de encontrar que a comida é salada. Logo, se após todo este esforço, encontramos uma salada no final do procedimento, podemos estar seguros de que existe um cachorrinho na caixa e que ele não foi acordado! A existência do cachorrinho afetou o estado apesar de não ter havido nenhuma interação nossa com ele. Isto é chamado de "medida quântica não destrutiva", e é a parte verdadeiramente surpreendente desta história toda.

Mas a coisa pode ficar melhor ainda. Note que se existe um cachorrinho na caixa na história acima, existe uma chance de 50% de que ele comece a latir, apesar de nosso desejo de não perturba-lo. Existe uma maneira de detectar o cachorrinho sem que ele acorde? Voce já deve saber que existe. Comece, novamente, com a comida no estado (salada). Agora gire o estado de apenas 1 grau, ao invés de 45 graus. Isso deixa a comida no estado (comida) = 0.999 (salada) + 0.017 (bife) (porque o coseno de 1 grau é 0.999 e o seno de 1 grau é 0.017). Coloque a comida na caixa. A chance de que o cachorrinho cheire o bife e comece a latir é 0.0172 = 0.0003, um número muito pequeno mesmo. Agora tire a comida da caixa e gire o estado de 1 grau também, sem observa-lo. Coloque-o de volta na caixa e repita o procedimento 90 vêzes. Se não tem nenhum cachorrinho na caixa, tudo o que fizemos foi uma rotação de 90 graus, e a comida termina no estado puro (bife). Se existe um cachorrinho, devemos aceitar que há uma pequena probabilidade de acorda-lo, mas ela é apenas 90 vezes 0.0003, que é menos que 3%. Entretanto, se tem um cachorrinho na caixa e ele não late, quando observamos o estado final há uma chance de mais de 97% de que elá será (salada), um sinal seguro de que há um cachorrinho lá dentro! Portanto, temos cerca de 97% de chance de saber com segurança se existe um cachorrinho lá dentro, sem acorda-lo. É óbvio que este procedimento pode ser melhorado, em princípio, tanto quanto queiramos, rodando o estado por ângulos cada vez menores e colocando a comida na caixa mais vêzes. Este é o "efeito Zeno quântico", batizado com o nome de um filósofo grego que não tinha a menor idéia das dificuldades que estava inventando.

Portanto, através do milagre da mecânica quântica, podemos detectar se existe um cachorrinho numa caixa, sem nunca perturbar seu estado. É claro que existe sempre alguma chance de acorda-lo, mas sendo cuidadosos podemos fazer com que essa probabilidade seja tão pequena quanto queiramos. Tiramos grande vantagem da propriedade mais misteriosa da mecânica quântica, a superposição e o colapso da função de onda. De maneira bastante concreta e real, a mecânica quântica nos permite montar um sistema no qual a existência de alguma característica (em nosso caso, o cachorrinho na caixa), afeta a evolução da função de onda, mesmo no caso em que não temos acesso direto (ou não perturbamos) essa característica.

Substitua agora o "cachorrinho dentro da caixa" por "o resultado de um cálculo é x". Em outras palavras, podemos montar uma experiência de forma que o estado quântico final terá uma certa forma se o cálculo tem uma certa resposta, mesmo que técnicamente não tenha ocorrido nenhum cálculo! Isso foi anunciado na imprensa como "computadores podem calcular a resposta sem fazer realmente nenhum cálculo". Essa é a idéia que está por trás de tudo.

A mecânica quântica é a coisa mais legal já inventada!

2 comments:

Anonymous said...

Prezado prof. Victor Rivelles, excelente texto.
Visito vossa página no IFUSP há alguns anos e só tenho encontrado boas informações por lá, com exceção a vossa visão um tanto reducionista sobre educação, em breve lhe enviarei um e-mail sobre o assunto.

Marise Borba said...

OI, VICTOR, VIBREI QUANDO ENCONTREI O TEU BLOG! As leituras me trouxeram grandes contribuições. Meu Doutorado é sobre "nanotecnologia", nas Ciências Humanas, mas sou bióloga e amo as ditas "ciências duras", cada vez mais apaixonada pela Física. Gostaria de te convidar para visitar meus Blogs, feitos recentemente, sobre alguma coisa que ando fazendo! Um é o NAVEGANDO NA NANOSFERA RUMO A ESCALAS MENORES I, no end. http://www.blogger.com/posts.g?blogID=38177636, e o outro é NAVEGANDO NA NANOSFERA RUMO A ESCALAS MENORES II, na nova versão do Blogger, no end. http://navegandonananosfera2.blogspot.com/.

Desejo-te muito sucesso e a troca de idéias comigo, pois será um imenso prazer! Um abraço!